Para
se entender essa estória, é preciso que voltemos no tempo e entendamos algumas condutas
imprimidas pelos papas João Paulo II e Bento XVI durante o exercício dos seus
pontificados.
Não se desconhece que o Vaticano é, para dizer
o mínimo, um estranho gestor de dinheiro e muitas das denúncias que surgiram no
último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o dinheiro
dissimulado. Esta é a herança financeira deixada pelo papa João Paulo II, que,
para muitos especialistas, explica a crise atual.
As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro cujas
origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a justiça
italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo norte-americano Paul
Marcinkus, o chamado “banqueiro de Deus”, presidente do Instituto para as Obras
de Religião (IOR), o banco do Vaticano e o máximo responsável pelos
investimentos da Santa Sé na época.
O jornalista Eduardo Febbro, em estarrecedor
artigo, comenta que João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do
Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois
devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro “não
contabilizado” do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade, algo
que Karol Wojtyla, o papa João Paulo II jamais esqueceu. Marcinkus terminou
seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de
perdas e investimentos mafiosos, além de vários cadáveres. No dia 18 de junho
de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de Blackfriars, em Londres. O
corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano. Seu aparente
suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano,
a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio
Gelli e o próprio IOR de Marcinkus. Até Matteo Messina Dernaro, o novo
chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no IOR por meio de
laranjas.
A guerra interna que desencadeou esse intento histórico de pôr fim às práticas
enganosas herdadas do pontificado de João Paulo II e colocar o banco do
Vaticano em sintonia com um mínimo de regras internacionais parece ser um dos
motivos que conduziram à renúncia inédita de Bento XVI.
O
papa Francisco iniciou o seu pontificado seguindo a conduta iniciada por Bento
XVI: recém-eleito papa, retirou os exorbitantes privilégios econômicos de que
gozavam (gratificação de 25.000 dólares) os cardeais membros da comissão que supervisionava
– inutilmente – as atividades do banco; depois, nomeou uma comissão de 5
membros encarregada de investigar a situação econômica e jurídica do banco do
Vaticano. Esta comissão presidida pelo cardeal salesiano Raffaele Farina – 80
anos – tem como missão propor uma reforma do banco, para que “os princípios do
Evangelho impregnem também as atividades de caráter econômico e financeiro”.
Por último, Francisco, em decisão sem precedentes, terminou por decapitar toda a
cúpula do IOR e pôr o banco sob o seu comando. A Santa Sé anunciou ontem a
renúncia do diretor geral do IOR, Paolo Cipriani, e do vice-diretor, Massimo
Tulli.
Além de cortar as cabeças que comandavam o IOR, a Santa Sé, há poucos dias, se
colocou à disposição da justiça italiana e isso permitiu a prisão de um alto
membro da cúria romana, o Monsenhor Nunzio Scarano, apelidado “Monsenhor 500”,
por seu gosto pronunciado e demonstrado por notas de 500 euros. Scarano, um
membro dos carabinieri, Giovanni Maria Zito e o negociante Giovanni Carenzio
são acusados de ter montado circuitos paralelos de lavagem de dinheiro através
do IOR.
Poderia se escrever uma história tão extensa e cativante como a Comédia Humana
de Balzac sobre o inescrupuloso banco do Vaticano, mas não temos espaço. A mim
me parece que um banco desse porte e religião não podem coexistir. Mas nisso o papa
Francisco está vigilante, já que pelas suas ações constatamos que não está de
acordo com um banco que funciona através de um sistema tecnicamente criminoso,
onde a hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de
decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos: corrupção,
capitalismo que mata, proteção de privilegiados, circuitos de poder que se auto
alimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo pontual da própria
decadência do sistema.
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