sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A inexistente imparcialidade


No princípio, eu me assustei como cidadã. Era difícil acreditar que da Presidência da República foram postados ataques caluniosos a pessoas, porque na democracia o aparato do Estado não pode ser usado pelo governo para atingir seus supostos adversários. A propósito: não sou adversária do governo; sou jornalista e exerço meu ofício de forma independente.” 
(Miriam Leitão, O GLOBO, 09/08)




Vem tendo muita divulgação o fato de terem sido feitas alterações nos perfis da Wikipedia de dois jornalistas. Isso justifica algum comentário.
A articulista de O GLOBO continua: “Ninguém, evidentemente, tem de concordar com o que eu escrevo ou falo no rádio e na televisão. Há, em qualquer democracia, um debate público, e eu gosto de estar nele. Mas postaram mentiras, e isso pertence ao capítulo da calúnia e difamação. Saber que funcionários públicos, computadores do governo, foram usados na Presidência da República para um trabalho sórdido assim foi um espanto. Uma das regras mais caras do Estado de Direito é que o grupo político que está no governo não pode usar os recursos do Estado contra pessoas das quais não gosta.”
“Na democracia, em todos os governos, ouvi reclamações de ministros e autoridades que eventualmente não gostaram de comentários ou colunas que fiz. Mas eram reclamações apenas, algumas me ajudaram a entender melhor um tema; outras eram desprovidas de razão. Desta vez, foi bem diferente; a atitude só é comparável com a que acontece em governos autoritários. Alguém deu ordem para que isso fosse executado. É uma política. Não é um caso fortuito. E o alvo não sou eu ou o Sardenberg. Este governo desde o princípio não soube lidar com as críticas, não entende e não gosta da imprensa independente.”, queixa-se Miriam Leitão.
“Sim, eu faço críticas à política econômica do governo porque ela tem posto em risco avanços duramente conquistados, tem tirado transparência dos dados fiscais, tem um desempenho lamentável, tem criado passivos a serem pagos nos futuros governos e por toda a sociedade. Isso não me transforma em inimiga. E, ainda que eu fosse, constitucionalmente o governo não tem o direito de fazer o que fez. É ilegal e imoral.”, termina o texto citado.




Jornalismo imparcial não existe, e quem duvidar disso poderá se esclarecer  assistindo o documentário “Mercado de Notícias” (pôster anexo), do diretor e roteirista Jorge Furtado. Ele descobriu na peça homônima do inglês Ben Jonson, publicada em 1625, uma "espantosa visão crítica, capaz de perceber na imprensa de notícias, recém-nascida, uma invenção de grande poder, em que questões polêmicas (censura e imparcialidade, por exemplo) são abordadas”. Ao traduzir o texto dramático de Ben Jonson para outro meio de comunicação (o cinema), Furtado evidencia a atemporalidade desse debate.
Aquilo a que uma imprensa responsável visa é que, na feitura de suas matérias, os repórteres tenham a maior isenção possível, dando igual espaço aos lados envolvidos.
O leitor que não concorde com as escolhas editoriais de um veículo da imprensa e ache que usar de maneira agressiva, ofensiva ou malcriada facebook, e-mail ou twitter para cobrar posições ideológicas que concordem com as suas desconhece que a polêmica e o contraditório são parte do regime democrático, no qual liberdade de imprensa e liberdade de opinião são garantidas constitucionalmente. 
Quem não souber lidar com as críticas, ou for incapaz de conviver com a diversidade de pensamento, “não entende e não gosta da imprensa independente”, como afirmou Miriam Leitão: todos têm direito a suas crenças, simpatias e ideologias, e não há unanimidade (sempre forçada, imposta, obrigatória) a não ser em regimes autoritários. Fora deles, consulte-se a frase do jornalista e escritor Nelson Rodrigues sobre unanimidade.
Outra consideração a ser levada em conta é que articulistas (que não são repórteres!) assinam seus textos e são os únicos responsáveis por eles: é ocioso, desnecessário, dispensável, inútil, supérfluo e prescindível querer impor-lhes palavras ou ideias.
Leituras, críticas construtivas e interpretações divergentes não invalidam argumentos discordantes, antes levam à reflexão e ao crescimento.
Ofensas não passam de ofensas: não contribuem e não acrescentam.








Edição n.º 948 - página 01

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